O Brasil já possuiu uma grande e diversificada indústria de veículos fora-de-série. Floresceu a partir dos anos 1960 e viveu um período de ouro enquanto a importação de carros esteve proibida, entre 1976 e 1990. Formalizada em setembro de 1969, a Gurgel Veículos foi a mais importante fabricante independente com capital integralmente nacional. Seu fundador, o engenheiro mecânico/eletricista João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, destacou-se pela ousadia, criatividade e espírito empreendedor.
As primeiras atividades industriais na capital paulista foram muito modestas no início dos anos 1960. Produziu karts (Gurgel Júnior), minicarros para crianças (réplicas de Corvette e Karmann-Ghia) e exibia experiências iniciais com veículos elétricos embrionários. No Salão do Automóvel de 1966, três anos antes de se estabelecer de modo mais bem organizado como indústria, lançou o bugue Ipanema com chassi e mecânica do Fusca. O utilitário leve Xavante XT tornou-se o primeiro sucesso de vendas já em 1970. As linhas lembravam as do Ipanema, mas Gurgel desenvolveu um chassi próprio e engenhoso: tubular de aço, revestido de plástico reforçado com fibra de vidro, sendo este também o material da carroceria.
A robustez do chassi e a impossibilidade de ataque por corrosão logo se tornaram a marca registrada de todos os produtos. Em 1975 inaugurava instalações maiores em Rio Claro, interior de São Paulo, onde começou a série X10 do Xavante. A idéia fixa da tração elétrica permaneceu na cabeça de Gurgel. O Itaipu, de dois lugares, apresentado em 1974, foi o primeiro ensaio que, claro, não deu certo. As tentativas continuaram com a versão E400, a partir de 1980, que acabou se transformando em G800, adotando, porém, o motor VW refrigerado a ar.
Nessa altura a marca oferecia uma linha bastante diversificada, incluindo derivações. Uma delas era o furgão X15 de linhas bem estranhas. Gurgel mostrou uma fase mais criativa ao lançar, em 1984, seu primeiro automóvel urbano, o XEF, para três passageiros numa única fileira. Tinha apenas 3,12 m de comprimento, mas 1,70 m de largura. Não alcançou sucesso por ser caro e incompreendido pelos compradores. No mesmo ano saiu o Carajás, utilitário de maior porte. Pela primeira vez usava motor dianteiro refrigerado a água (VW Santana, 1.800 cm³) e transeixo traseiro, oferecendo espaço interno mais amplo.
Como o Carajás também pouco vendeu, o engenheiro, sem abandonar a produção do Xavante, voltou a pensar nos minicarros, agora de baixo custo. Uma antiga idéia chamada Cena — sigla para Carro Econômico Nacional — renasceu com vigor. Gurgel apostou todas as fichas nesse projeto ambicioso e de alto risco. Iniciou incursões no mundo político ao arrancar do presidente da República José Sarney um subsídio escancarado sob medida para seu produto. Outro erro foi lançar um plano de venda pública de ações da Gurgel Veículos vinculadas à aquisição do carro.
O engenheiro invocou até o nome de Henry Ford, em publicidade, para atrair “sócios”. Esqueceu que a Indústria Brasileira de Automóveis Presidente havia fracassado. Entre outras causas, por estudos falhos de viabilidade e esquema acionário mal resolvido. Gurgel decidiu produzir inclusive motor próprio de dois cilindros horizontais (motor VW cortado ao meio), trocando arrefecimento a ar por água.
Na época do lançamento — 1988 — Ayrton Senna conquistou o primeiro título mundial de Fórmula 1. Podia parecer oportunismo vender um modelo identificado pelo mesmo fonema. Negociações de bastidores levaram Gurgel a rebatizar o carro de BR-800, referência ao Brasil e à cilindrada. O pequeno automóvel conseguiu atrair atenções no primeiro ano de comercialização. Os problemas começaram no momento de vender aos não-acionistas. Tudo se agravou a partir de 1990, quando o presidente Fernando Collor baixou o imposto para motores de 1.000 cm³. Em 1992, a empresa, bastante endividada, evoluiu o BR-800 para Supermini, de linhas agradáveis. Era tarde demais. Entrou em concordata no ano seguinte, parou de produzir em 1994 e veio a falir dois anos depois.
O engenheiro Gurgel criou algumas soluções técnicas brilhantes, outras nem tanto. Se tivesse mantido sua especialização nos utilitários talvez sobrevivesse, pois chegou a exportá-los para 40 países. Sempre fez críticas ferozes e infundadas ao programa brasileiro do álcool. A história acabou demonstrando que estava errado. Possivelmente por ter sido mal sucedido na idéia do carro elétrico, atacava a alternativa viável em que se transformou o álcool.
Nessa postagem foi apresentado quase todos os modelos dessa espetacular Gurgel, quase todos os modelos desses inovadores carros. Em futuras postagens, vou colocar modelo por modelo para que nós possamos aprender e conhecer mais sobre esses carros que ficaram no passado e na memória de todos os amantes dos carros.
Fonte: http://revista.webmotors.com.br