Antes
de qualquer coisa: dizer que o motor Volkswagen AP é o motor mais popular do
Brasil não significa a mesma coisa que dizer que ele é o melhor motor do
Brasil. É apenas a constatação de algo evidente: o Gol foi o carro mais vendido
do Brasil por duas décadas, e ele é só um dos vários modelos da Volks que já
utilizaram o motor AP. Lidar com ele é o mínimo que qualquer mecânico precisa
saber, e o mercado de componentes de preparação é o maior e mais variado. Sem
falar em todo o culto ao AP e aos carros equipados com ele, que fazem parte de
uma das maiores cenas da car culture brasileira. De qualquer forma, se
o motor AP não fosse, no mínimo, um bom motor, ele não seria tão longevo nem
tão popular. E o mais interessante é que, apesar de ser muito associado à
indústria automotiva nacional, o motor AP tem suas raízes profundamente
entrelaçadas à história moderna do Grupo Volkswagen. Na verdade, dá para dizer
mais: o motor que conhecemos como AP foi parte fundamental na transição da
Volkswagen do ar para a água. Até a década de 1960, a filosofia de produto da
Volkswagen era ditada pelo então presidente da Volkswagen, Heinz Nordhoff. Ao
mesmo tempo em que, progressista, lutou pela expansão da marca para outros
países Nordhoff também
era conservador: para ele, o futuro da VW estaria garantido enquanto seus
carros seguissem a mesma fórmula básica, com motor boxer refrigerado a ar,
montado na traseira. A carroceria até poderia mudar, mas a constância do
conjunto mecânico era essencial para manter a boa reputação dos carros da
companhia.
Acontece que esta
filosofia estava errada. Em meados dos anos 60, a Volkswagen já tinha modelos
diferentes, como o Typ 3 (que daria origem a nossos conhecidos TL, 1600 “Zé do
Caixão” e Variant), mas seu carro-chefe nas vendas ainda era o Fusca. Mas não
seria suficiente. Uma tentativa frustrada de lançar um carro de luxo, o
Volkswagen Typ 4 (ou 411) foi necessária para que Nordhoff enxergasse o tamanho
do problema. O carro, uma espécie de TL crescido, era movido por um motor
boxer a ar de 1,7 litro, com injeção de combustível 81 cv. Tinha suspensão por
molas helicoidais na traseira e aproveitava muito bem o espaço interno.
Só que era um carro de
visual no mínimo questionável e decididamente desproporcional. Além disso, lhe
faltava estabilidade quando comparado a carros mais modernos, equipados com
motor dianteiro, por causa do peso concentrado sobre as rodas traseiras.
Não tivesse Nordhoff
decidido, finalmente, acompanhar a tendência, talvez a Volkswagen de hoje nem
existisse. Claro, o Fusca ainda sobreviveu até 2003, quando deixou de ser
produzido no México. Mas, àquela altura, ele era apenas um sopro do que fora no
passado, um modelo de baixo custo que resistiu mais por seu carisma que por
suas qualidades técnicas. Quase uma anomalia. Desculpem o termo, mas a verdade
é que só ao quebrar a tradição iniciada no Fusca foi que a Volkswagen garantiu
seu futuro. E mais, deu forma a ele, pois o primeiro motor de arrefecimento
líquido projetado pela VW foi onipresente em diversos carros do grupo por
décadas a fio. Tudo graças à… Mercedes-Benz.
Enquanto a Volkswagen
estava às voltas com sua crise de identidade, as outras fabricantes de
automóveis alemãs não paravam. Olha só: em 1959 a Daimler, dona da
Mercedes-Benz, havia acabado de comprar a Auto Union, conglomerado de
fabricantes do qual faziam parte DKW, Horch, Wanderer e Audi (esta parte é
um pouco confusa, mas é importante). A Daimler estava especialmente interessada
na DKW, e pretendia aproveitar os recursos da companhia para expandir a
produção dos carros da Mercedes. Mas como os DKW eram carros populares e
compactos, que vendiam bem, decidiu-se que eles continuariam sendo produzidos
normalmente e, de certa forma, a DKW continuaria independente.
A DKW foi uma das
fabricantes que apostaram as fichas no arranjo de motor e tração na dianteira.
Os antigomobilistas brasileiros sabem disto muito bem, pois seus carros tiveram
presença forte no Brasil na década de 1960. Só que, fora isto, sua concepção
não era exatamente moderna: seus motores de três cilindros e dois tempos eram
confiáveis e eficientes, mas seu rendimento já deixava a desejar diante da
concorrência. Em 1963, uma revolução começou a acontecer: a DKW apresentou o
F102. O sedã de três volumes ainda tinha um motor dois-tempos de três
cilindros, mas era o primeiro DKW com construção monobloco e suspensão
independente com braços sobrepostos (!) na dianteira. No entanto, pelo fraco
desempenho do motor de 1,2 litro e apenas 60 cv, o carro não vendeu muito bem.
A solução óbvia: mais
potência! Só que isto só poderia ser conseguido com um motor novo – ou ao
menos era o que o engenheiro Ludwig Krauss pensava. Talvez você não tenha
ouvido falar nele, mas é fácil te dar uma noção de quem ele era: Krauss era o
chefe da equipe de engenharia do Mercedes-Benz W154, monoposto projetado por
Rudolf Uhlenhaut que, de 23 Grand Prix disputados em 1938 e 1939,
venceu 12. Com sua carroceria de alumínio polido sem pintura, ele foi um dos
grandes nome da era das Flechas de Prata, período em que a Mercedes e a
Auto Union dominaram a categoria que deu origem à Fórmula 1. Ou seja, o cara
provavelmente entendia uma coisa ou duas de motores. E ele chegou à conclusão
de que o F102 precisava de um motor de quatro cilindros e quatro tempos, com
comando de válvulas no cabeçote. Em sua visão, o comando seria acionado por
corrente, mas já era uma evolução e tanto. Com diâmetro e curso de 80×84,4
mm, o quatro-cilindros deslocava 1,7 litro (1.697 cm³) e entregava 72 cv.
Há outro detalhe
interessante nesta história: o projeto deste motor derivava de um programa
militar da Mercedes-Benz, que iria desenvolver um quatro-cilindros com taxa de
compressão que ficava entre um motor Ciclo Diesel e um motor Ciclo Otto para ser usado em utilitários. Por sua natureza intermediária,
o motor ficaria conhecido como Mitteldruckmotor – “motor de pressão
média”, em tradução literal. Iniciado o novo projeto, foi adotado o código
F103. A ideia era instalar o quatro-cilindros de 1,7 litro no lugar do
três-cilindros de 1,2 litro – algo que, naturalmente, exigiu algumas
adaptações. Para que o motor coubesse, o bloco teve que ser inclinado para a
direita. Na frente, não sobrou espaço para o radiador, que foi colocado do lado
direito do motor. Reconhece essa configuração?
Acontece que aqueles
ainda eram tempos turbulentos para a Auto Union, que já estava com sua
estabilidade financeira prejudicada. Não era bom negócio para a Daimler
continuar com a marca sob sua asa, e em 1964 a Auto Union foi vendida para a
Volkswagen. Com isto, o desenvolvimento do F103 pôde prosseguir. A Volks
queria distância do nome DKW e de sua associação com os antiquados motores
dois-tempos e, por isso, o carro foi lançado em setembro de 1965 simplesmente
como Auto Union Audi. Não demorou para que ele fosse rebatizado como Audi
72, por causa da potência de 72 cv. Em 1966, uma versão com motor de 80 cv foi
batizada como… Audi 80.
Mas calma: não estamos
falando do Audi 80 que você conhece como “Passat da Audi”. Vamos chegar lá
daqui a pouco. Acontece que, ao longo dos anos, a Audi foi lançando outras
versões do F103, sempre batizadas de acordo com a potência: em 1966, veio o
Audi Super 90; em 1968, o Audi 60; em 1969, o Audi 75. Só que o ano de 1969
também trouxe uma mudança na Auto Union. Naquele ano, a Volkwagen comprou a
NSU, fabricante alemã que estava à beira da falência, e decidiu fundi-la à Auto
Union. Nascia ali a Audi moderna que, logo de cara, começou a trabalhar no
sucessor do F103, pois já era hora de abandonar de vez as velhas raízes. O
motor do F103 foi retrabalhado para o novo automóvel, com algumas mudanças no
projeto – entre elas, a relocação do radiador para o lado esquerdo do
motor, paralelo à grade dianteira. Ele seria igualmente instalado em posição
longitudinal e, claro, também moveria as rodas dianteiras. Uma diferença
importante era a atuação do comando de válvulas, agora por correia dentada, que
se tornaria padrão dali em diante.
O sucessor do F103
também aproveitava conceitos como a suspensão independente na dianteira (agora
McPherson, mais barata) e as linhas gerais da carroceria, ainda que esta fosse
mais compacta e retilínea. No mais, ficava evidente que seu visual era uma
evolução do F103. A plataforma ficou conhecida posteriormente como B1. O carro
foi lançado em 1972, e batizado como Audi 80. O motor podia ter 1,3 litro e 55
cv na versão de entrada; 1,5 litro e 75 cv nas versões intermediárias e 1,5
litro e 85 cv na versão de topo. Detalhe: a nomenclatura das versões era
L, S, LS, GL e GLS, como a VW faria anos mais tarde.
Não é coincidência
nenhuma: o motor do Audi 80 era chamado EA-827. Exatamente o motor que deu
origem ao nosso icônico motor Volkswagen AP. E mais: o próprio Audi 80 foi a
base para o Volkswagen Passat de primeira geração, lançado em 1973 na Europa. A
maior diferença entre os dois carros era o formato da carroceria: enquanto o
Audi 80 era oferecido como sedã de duas e quatro portas, o Passat vinha
como fastback de duas ou quatro portas, ou ainda perua de quatro portas.
No entanto, a dianteira de ambos os carros era idêntica. Mudava apenas o
emblema na grade. E, mecanicamente os carros também eram idênticos,
compartilhando exatamente os mesmos motores.
No ano seguinte, o
Passat foi lançado também no Brasil. Ele também foi o primeiro VW com motor
refrigerado a água vendido por aqui e logo ficou conhecido como o carro mais
moderno disponível no País. E o desenho da carroceria fastback, de Giorgetto
Giugiaro, também agradou em cheio. O motor de 1,5 litro, conhecido no Brasil
como motor BR, utilizava um carburador Solex de corpo simples e tinha taxa de
compressão reduzida em relação ao utilizado pelo Audi 80 e, por isso, tinha 65
cv. A partir daí, a história fica bem menos misteriosa: em 1980, o Passat
ganhou a companhia do Gol, que trouxe um motor boxer refrigerado a ar na
dianteira. No ano seguinte, foi a vez do sedã Voyage, que passou a
utilizar o 1.5 do Volkswagen Passat, assim como a perua Parati no ano seguinte.
Em 1983, a Volkswagen
apresentou o motor MD-270, também conhecido como “Torque”. Com alterações na
taxa de compressão, bielas, pistões e comando de válvulas, além de um
carburador de corpo duplo, o motor passou a deslocar 1,6 litro e entregar 81 cv
quando movido a álcool. No ano seguinte, novas alterações no projeto: o
comprimento das bielas foi ampliado de 136 mm para 144 mm, mudança
que tornou seu funcionamento mais suave. A partir daí, sua denominação
passou a ser Alta Performance. Ou, mais popularmente, AP. Quem diria que sua
história nos levaria para tão longe no passado?