sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Carta de Turim: o manual das boas práticas (Parte 03)

Inspirada nas Cartas de Veneza, Barcelona e de Riga, orientadas respectivamente para a conservação, restauro, manutenção e preservação de edifícios e monumentos, embarcações e veículos ferroviários históricos, a Carta de Turim foi escrita em Munique em outubro de 2012 e decretada pela FIVA em janeiro de 2013 no Museu da Mercedes-Benz (em Stuttgart) com a mesma intenção, mas voltada para os automóveis históricos. 


São 11 artigos dispostos em apenas quatro páginas, com diretrizes que formaram as raízes do livro recentemente publicado Charter of Turin Handbook, este sim um guia de 120 páginas com a intenção de orientar os antigomobilistas sobre as boas práticas da conservação, restauração e compreensão do que é importante em um veículo histórico. E do que é propriamente original no sentido mais estrito do termo. É um material que ajuda a entender porque parte considerável dos vencedores dos concursos de elegância são historicamente incoerentes em diversos pontos. Contudo, como é um livro orientado à linhas-mestre mais gerais, ele menciona pouco sobre as modificações sutis que os proprietários acabam fazendo no processo de over restoration. Em várias passagens, seus autores expressam a preocupação com a obsessão do over restoration, como: “Uma quantidade excepcional de matéria histórica original é perdida nas chamadas “restaurações concours”, que exageram em uma condição imaginária de impecável (…). Um esforço imenso é empreendido em eliminar cada “incômodo” ou “invisível” traço de envelhecimento e desta forma, toda a substância histórica é eliminada até os ossos. Isso cria uma situação absurda, considerando que o envelhecimento e a integridade do material original são os requerimentos básicos de como um veículo pode ser reconhecido como um objeto original da história da nossa cultura.” Ou: “Da mesma forma que não podemos imaginar restaurar uma edificação histórica – vamos imaginar um templo grego como exemplo – como se ele tivesse sido construído ontem, pois isso representaria uma falsificação de sua natureza e uma mistificação de sua história,  deveríamos evitar modificar os veículos para uma condição “mint” ou “melhor do que novo”.” Embora estes dois trechos em específico sejam mais diretos e talvez até intimidadores, de forma geral tanto a Carta quanto o livro derivado desta são bastante educativos e se colocam como um material de orientação, com a intenção de jogar uma luz sobre a importância da preservação. Interferir o quanto for necessário e, ao mesmo tempo, o mínimo possível. O livro também expõe algumas dificuldades inevitáveis ao processo, como a questão das tintas, visto que hoje praticamente tudo o que está disponível no mercado tem base de água.
Esta Alfa Romeo Giulietta SZ Coda Tronca 1961 do colecionador Corrado Lopresto foi o primeiro carro não-restaurado a ser exposto com destaque no Concorso d’Eleganza Villa D’Este: o lado direito foi recuperado com o mínimo de intervenção possível, buscando os mesmos materiais e técnicas da época. O resultado é menos vistoso que os típicos vencedores de concursos de elegância, mas sem dúvida, historicamente mais preciso: você sente a antiguidade de um carro mundano, não de um monolito de 2001 na forma de automóvel. Na prática, a Carta manifesta publicamente aquilo que os colecionadores mais tradicionais e apaixonados sempre prezaram: se a restauração se faz necessária porque a deterioração do veículo está num estado crítico, é parte fundamental do processo de restauração a pesquisa histórica não só sobre qual era a cor exata, mas também entender quais eram os materiais utilizados na pintura, qual era a percepção visual destes acabamentos, o quanto eles brilhavam quando novos, como eram os gaps de carroceria, quais eram os tecidos e curtumes e sua espessura, quais os tipos de madeira e verniz empregados, como era disposta a fiação. É literalmente um trabalho de historiador, que pode envolver tanto a pesquisa por material de época quanto a busca por exemplares survivors para fazer a anotação.
Bugatti T35 (ou T39) de George Eyston: 
note os acabamentos e uma certa irregularidade nas junções. A falta de brilho se deve mais à poeira.
Se pararmos pra pensar, não só faz sentido como deixa toda a jornada de restauração muito mais saborosa e enriquecedora. E justifica o termo restauração: o fruto que nasce de um trabalho meticuloso de restauração feito desta forma é historicamente muito mais preciso que um carro que é simplesmente desmontado e restaurado no modo “tudo que dá”, com os melhores materiais e processos possíveis, se preocupando apenas em preservar as cores originais de carroceria e estilo de acabamento, mas buscando superar o acabamento do original em cada item executado.

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