quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Clássicos: na zona cinza entre propriedade particular e patrimônio cultural (Parte 02)


Carros são propriedade privada, incluindo os antigos. Portanto, a seu dono e ninguém mais cabe decidir o que será feito dele, correto? Isso fica fácil de visualizar quando pensamos num Honda Civic EG que será preparado ou mesmo num Opala Diplomata que será feito um projeto restomod. Carros relativamente recentes (ainda que próximos aos seus 30 anos) e de grande volume de produção, com mínimo interesse coletivo acerca daquele exemplar em específico.

Agora, vamos mudar de atores: o GT40 vencedor das 24 Horas de Le Mans de 1969, o primeiro Opala fabricado na história, o último Fusca Itamar produzido, um dos Mercedes-Benz W196 pilotado por Juan Manuel Fangio. Imagine que estes quatro carros pertençam ao mesmo dono e estão absolutamente íntegros, trazendo apenas a sua pequena dose de pátina – no mundo dos antigos, é aquele leve desgaste natural da pintura, cromos e tapeçaria de fábrica (veja foto abaixo), não confundindo com deterioração ou sinais de abuso. Agora, imagine que os quatro serão desmontados e pintados de roxo com tapeçaria creme, porque toda a coleção deste dono é feita de carros roxos com tapeçaria creme. Sentiu a torção no estômago e uma indignação numa escala mais humanitária que material?

Isso é porque embora os carros clássicos sejam propriedade privada, eles são artefatos históricos também. E com isso, entra-se numa zona cinza entre o que é de interesse privado e o que é patrimônio cultural, especialmente em exemplares que tenham sido marco de algum evento ou produção histórica. O mesmo vale para veículos muito antigos íntegros ou de extrema raridade e valor, como os clássicos das décadas de 20 a 40 que costumam figurar em concursos de elegância. Em todos estes casos, o interesse coletivo deste bem como artefato histórico é enorme.
É por isso que a preocupação da FIVA é legítima. Não se trata de bedelho no carro dos outros: a federação tem feito este trabalho como conscientização e orientação, não como imposição. Até porque muitos destes casos de over restoration nascem com a melhor das intenções, de se fazer o melhor trabalho técnico possível que o dinheiro possa pagar. E na maior parte dos casos destes concursos, seus donos possuem uma fonte quase inesgotável de dinheiro. Mas isso também se mistura à vaidade estimulada pelos concursos de elegância, que por muito tempo valorizaram e destacaram o over restoration, ainda que de forma velada. Reeducar o que é importante premiar e destacar também fez parte deste trabalho da FIVA, que foi consolidada num documento chamado Carta de Turim..

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