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terça-feira, 24 de outubro de 2017

Uma Lenda... Volkswagen AP: afinal, como surgiu o motor mais popular do Brasil?

Antes de qualquer coisa: dizer que o motor Volkswagen AP é o motor mais popular do Brasil não significa a mesma coisa que dizer que ele é o melhor motor do Brasil. É apenas a constatação de algo evidente: o Gol foi o carro mais vendido do Brasil por duas décadas, e ele é só um dos vários modelos da Volks que já utilizaram o motor AP. Lidar com ele é o mínimo que qualquer mecânico precisa saber, e o mercado de componentes de preparação é o maior e mais variado. Sem falar em todo o culto ao AP e aos carros equipados com ele, que fazem parte de uma das maiores cenas da car culture brasileira. De qualquer forma, se o motor AP não fosse, no mínimo, um bom motor, ele não seria tão longevo nem tão popular. E o mais interessante é que, apesar de ser muito associado à indústria automotiva nacional, o motor AP tem suas raízes profundamente entrelaçadas à história moderna do Grupo Volkswagen. Na verdade, dá para dizer mais: o motor que conhecemos como AP foi parte fundamental na transição da Volkswagen do ar para a água. Até a década de 1960, a filosofia de produto da Volkswagen era ditada pelo então presidente da Volkswagen, Heinz Nordhoff. Ao mesmo tempo em que, progressista, lutou pela expansão da marca para outros países Nordhoff também era conservador: para ele, o futuro da VW estaria garantido enquanto seus carros seguissem a mesma fórmula básica, com motor boxer refrigerado a ar, montado na traseira. A carroceria até poderia mudar, mas a constância do conjunto mecânico era essencial para manter a boa reputação dos carros da companhia.
Acontece que esta filosofia estava errada. Em meados dos anos 60, a Volkswagen já tinha modelos diferentes, como o Typ 3 (que daria origem a nossos conhecidos TL, 1600 “Zé do Caixão” e Variant), mas seu carro-chefe nas vendas ainda era o Fusca. Mas não seria suficiente. Uma tentativa frustrada de lançar um carro de luxo, o Volkswagen Typ 4 (ou 411) foi necessária para que Nordhoff enxergasse o tamanho do problema. O carro, uma espécie de TL crescido, era movido por um motor boxer a ar de 1,7 litro, com injeção de combustível 81 cv. Tinha suspensão por molas helicoidais na traseira e aproveitava muito bem o espaço interno.
Só que era um carro de visual no mínimo questionável e decididamente desproporcional. Além disso, lhe faltava estabilidade quando comparado a carros mais modernos, equipados com motor dianteiro, por causa do peso concentrado sobre as rodas traseiras.
Não tivesse Nordhoff decidido, finalmente, acompanhar a tendência, talvez a Volkswagen de hoje nem existisse. Claro, o Fusca ainda sobreviveu até 2003, quando deixou de ser produzido no México. Mas, àquela altura, ele era apenas um sopro do que fora no passado, um modelo de baixo custo que resistiu mais por seu carisma que por suas qualidades técnicas. Quase uma anomalia. Desculpem o termo, mas a verdade é que só ao quebrar a tradição iniciada no Fusca foi que a Volkswagen garantiu seu futuro. E mais, deu forma a ele, pois o primeiro motor de arrefecimento líquido projetado pela VW foi onipresente em diversos carros do grupo por décadas a fio. Tudo graças à… Mercedes-Benz.
Enquanto a Volkswagen estava às voltas com sua crise de identidade, as outras fabricantes de automóveis alemãs não paravam. Olha só: em 1959 a Daimler, dona da Mercedes-Benz, havia acabado de comprar a Auto Union, conglomerado de fabricantes do qual faziam parte DKW, Horch, Wanderer e Audi (esta parte é um pouco confusa, mas é importante). A Daimler estava especialmente interessada na DKW, e pretendia aproveitar os recursos da companhia para expandir a produção dos carros da Mercedes. Mas como os DKW eram carros populares e compactos, que vendiam bem, decidiu-se que eles continuariam sendo produzidos normalmente e, de certa forma, a DKW continuaria independente.
A DKW foi uma das fabricantes que apostaram as fichas no arranjo de motor e tração na dianteira. Os antigomobilistas brasileiros sabem disto muito bem, pois seus carros tiveram presença forte no Brasil na década de 1960. Só que, fora isto, sua concepção não era exatamente moderna: seus motores de três cilindros e dois tempos eram confiáveis e eficientes, mas seu rendimento já deixava a desejar diante da concorrência. Em 1963, uma revolução começou a acontecer: a DKW apresentou o F102. O sedã de três volumes ainda tinha um motor dois-tempos de três cilindros, mas era o primeiro DKW com construção monobloco e suspensão independente com braços sobrepostos (!) na dianteira. No entanto, pelo fraco desempenho do motor de 1,2 litro e apenas 60 cv, o carro não vendeu muito bem.
A solução óbvia: mais potência! Só que isto só poderia ser conseguido com um motor novo – ou ao menos era o que o engenheiro Ludwig Krauss pensava. Talvez você não tenha ouvido falar nele, mas é fácil te dar uma noção de quem ele era: Krauss era o chefe da equipe de engenharia do Mercedes-Benz W154, monoposto projetado por Rudolf Uhlenhaut que, de 23 Grand Prix disputados em 1938 e 1939, venceu 12. Com sua carroceria de alumínio polido sem pintura, ele foi um dos grandes nome da era das Flechas de Prata, período em que a Mercedes e a Auto Union dominaram a categoria que deu origem à Fórmula 1. Ou seja, o cara provavelmente entendia uma coisa ou duas de motores. E ele chegou à conclusão de que o F102 precisava de um motor de quatro cilindros e quatro tempos, com comando de válvulas no cabeçote. Em sua visão, o comando seria acionado por corrente, mas já era uma evolução e tanto. Com diâmetro e curso de 80×84,4 mm, o quatro-cilindros deslocava 1,7 litro (1.697 cm³) e entregava 72 cv.
Há outro detalhe interessante nesta história: o projeto deste motor derivava de um programa militar da Mercedes-Benz, que iria desenvolver um quatro-cilindros com taxa de compressão que ficava entre um motor Ciclo Diesel e um motor Ciclo Otto para ser usado em utilitários. Por sua natureza intermediária, o motor ficaria conhecido como Mitteldruckmotor – “motor de pressão média”, em tradução literal. Iniciado o novo projeto, foi adotado o código F103. A ideia era instalar o quatro-cilindros de 1,7 litro no lugar do três-cilindros de 1,2 litro – algo que, naturalmente, exigiu algumas adaptações. Para que o motor coubesse, o bloco teve que ser inclinado para a direita. Na frente, não sobrou espaço para o radiador, que foi colocado do lado direito do motor. Reconhece essa configuração?
Acontece que aqueles ainda eram tempos turbulentos para a Auto Union, que já estava com sua estabilidade financeira prejudicada. Não era bom negócio para a Daimler continuar com a marca sob sua asa, e em 1964 a Auto Union foi vendida para a Volkswagen. Com isto, o desenvolvimento do F103 pôde prosseguir. A Volks queria distância do nome DKW e de sua associação com os antiquados motores dois-tempos e, por isso, o carro foi lançado em setembro de 1965 simplesmente como Auto Union Audi. Não demorou para que ele fosse rebatizado como Audi 72, por causa da potência de 72 cv. Em 1966, uma versão com motor de 80 cv foi batizada como… Audi 80.
Mas calma: não estamos falando do Audi 80 que você conhece como “Passat da Audi”. Vamos chegar lá daqui a pouco. Acontece que, ao longo dos anos, a Audi foi lançando outras versões do F103, sempre batizadas de acordo com a potência: em 1966, veio o Audi Super 90; em 1968, o Audi 60; em 1969, o Audi 75. Só que o ano de 1969 também trouxe uma mudança na Auto Union. Naquele ano, a Volkwagen comprou a NSU, fabricante alemã que estava à beira da falência, e decidiu fundi-la à Auto Union. Nascia ali a Audi moderna que, logo de cara, começou a trabalhar no sucessor do F103, pois já era hora de abandonar de vez as velhas raízes. O motor do F103 foi retrabalhado para o novo automóvel, com algumas mudanças no projeto – entre elas, a relocação do radiador para o lado esquerdo do motor, paralelo à grade dianteira. Ele seria igualmente instalado em posição longitudinal e, claro, também moveria as rodas dianteiras. Uma diferença importante era a atuação do comando de válvulas, agora por correia dentada, que se tornaria padrão dali em diante.
O sucessor do F103 também aproveitava conceitos como a suspensão independente na dianteira (agora McPherson, mais barata) e as linhas gerais da carroceria, ainda que esta fosse mais compacta e retilínea. No mais, ficava evidente que seu visual era uma evolução do F103. A plataforma ficou conhecida posteriormente como B1. O carro foi lançado em 1972, e batizado como Audi 80. O motor podia ter 1,3 litro e 55 cv na versão de entrada; 1,5 litro e 75 cv nas versões intermediárias e 1,5 litro e 85 cv na versão de topo. Detalhe: a nomenclatura das versões era L, S, LS, GL e GLS, como a VW faria anos mais tarde.
Não é coincidência nenhuma: o motor do Audi 80 era chamado EA-827. Exatamente o motor que deu origem ao nosso icônico motor Volkswagen AP. E mais: o próprio Audi 80 foi a base para o Volkswagen Passat de primeira geração, lançado em 1973 na Europa. A maior diferença entre os dois carros era o formato da carroceria: enquanto o Audi 80 era oferecido como sedã de duas e quatro portas, o Passat vinha como fastback de duas ou quatro portas, ou ainda perua de quatro portas. No entanto, a dianteira de ambos os carros era idêntica. Mudava apenas o emblema na grade. E, mecanicamente os carros também eram idênticos, compartilhando exatamente os mesmos motores.
No ano seguinte, o Passat foi lançado também no Brasil. Ele também foi o primeiro VW com motor refrigerado a água vendido por aqui e logo ficou conhecido como o carro mais moderno disponível no País. E o desenho da carroceria fastback, de Giorgetto Giugiaro, também agradou em cheio. O motor de 1,5 litro, conhecido no Brasil como motor BR, utilizava um carburador Solex de corpo simples e tinha taxa de compressão reduzida em relação ao utilizado pelo Audi 80 e, por isso, tinha 65 cv. A partir daí, a história fica bem menos misteriosa: em 1980, o Passat ganhou a companhia do Gol, que trouxe um motor boxer refrigerado a ar na dianteira. No ano seguinte, foi a vez do sedã Voyage, que passou a utilizar o 1.5 do Volkswagen Passat, assim como a perua Parati no ano seguinte.
Em 1983, a Volkswagen apresentou o motor MD-270, também conhecido como “Torque”. Com alterações na taxa de compressão, bielas, pistões e comando de válvulas, além de um carburador de corpo duplo, o motor passou a deslocar 1,6 litro e entregar 81 cv quando movido a álcool. No ano seguinte, novas alterações no projeto: o comprimento das bielas foi ampliado de 136 mm para 144 mm, mudança que tornou seu funcionamento mais suave. A partir daí, sua denominação passou a ser Alta Performance. Ou, mais popularmente, AP. Quem diria que sua história nos levaria para tão longe no passado?

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